Com história de sucesso, Mille vira "mito" após sair de linha
Com uma trajetória de trinta anos, desde o lançamento, em 1983, o velho
e conhecido Uno, com aquele jeitinho de bota ortopédica, se despediu do mercado
brasileiro no final de 2013. Foram mais de 3,7 milhões de unidades produzidas.
A robustez, a economia e a facilidade de manutenção o mantiveram por bastante
tempo no mercado e ajudaram o compacto a construir uma trajetória de sucesso. Mesmo
fora de linha, a internet ainda ajudou no aumento de popularidade do modelo: em
alusão aos carros de empresas de telefonia e TV a cabo, tarefa que o hatch
cumpria muito bem, o compacto da Fiat virou meme. Desde que tenha uma escada no
teto, claro!
Quem diz que um Uno com escada no teto é o carro mais rápido do mundo,
talvez não imagine que, em janeiro de 1983, a Fiat lançou fez o lançamento dele
– que era o primeiro carro mundial da marca – no Cabo Canaveral (Flórida), nos
Estados Unidos. Mas acalme-se: foi lançamento do modelo no mercado, não no
espaço. Um ano depois, o Brasil recebeu o Uno, que inovou e conquistou as ruas
do país. Em 2013, devido a obrigatoriedade de ABS e airbag em todos os veículos
produzidos a partir de 1º de janeiro de 2014, o mito se despediu.
Mesmo assim, o pequeno hatch que surgiu no velho continente construiu
fama no mundo inteiro. Em um vídeo, que você vê abaixo, do canal Acelerados, no
YouTube, o apresentador Gerson Campos, relatou que a fama do Uno se espalhou
até pelo gélido Alasca, nos Estados Unidos. Ele contou que um amigo foi à
província estadunidense para um trabalho científico e ouviu de um motorista que
no Brasil havia um carro muito valente.
“A Small car”, definia o gringo, enquanto tentava lembrar do modelo. Ao
lembrar da marca, o brasileiro chutou “Uno?” e viu o motorista confirmar logo em
seguida. Nada curiosamente, a história acima foi contada dentro de um Fiat Uno.
E haja história para falar deste automóvel.
Em 1984 o Fiat 147, que já tinha oito anos de mercado, perdia fôlego. Como
resposta, a fabricante respondia com o lançamento do novo modelo da marca em
sua fábrica, localizada em Betim (MG). O Uno dava sinal de luz e ultrapassava
seu antecessor.
Não antes de receber alguns toques brasileiros, que o deram ainda mais
personalidade frente ao projeto original. A primeira mudança estética evidente
ficava por conta do capô, que avançava sob os para-lamas: a alteração
permitiria alocar o estepe no compartimento do motor, como no predecessor. Isto
fazia com que o Uno não perdesse espaço no porta-malas e evitasse a retirada de
toda a bagagem se o pneu furasse em uma viagem, por exemplo.
Este não foi o único motivo para que o pneu reserva fosse parar no
compartimento do motor. A própria Fiat havia constatado que os amortecedores
originais não aguentariam mais do que cinco mil quilômetros sob uso intenso em
nosso asfalto. Por isso a adoção da suspensão traseira independente MCPherson,
com feixe de molas transversal, herdada do 147. O uso deste sistema fez com que
não houvesse espaço para a caixa de roda reserva no porta-malas, fazendo com
que ele fosse parar no cofre do motor. A “nova velha” MCPherson trazia maior
robustez, mas afetava diretamente no conforto. Uma característica desta
suspensão era a cambagem negativa das rodas, à medida em que o feixe de molas cedia,
por acréscimo de carga ou pelo tempo de uso.
Pai de família
Em outubro do mesmo ano de seu
lançamento, chegava a versão Sport Experimental – SX (acima). Debaixo do capô,
um motor 1.3 com carburador de corpo duplo que fazia o motor alcançar 71,4 cv
(gasolina) e 70 cv (álcool) com torque de 10,6 kgfm. O propulsor levava o
modelo aos 155 km/h de velocidade máxima.
A chegada do três volumes Prêmio trazia porta-malas com capacidade para 530
litros e aposentava o sedã Oggi, de apenas dois anos de idade, e vendas pouco
expressivas. O derivado do Uno vinha com motor argentino Sevel de 1.5 – fruto
da associação entre Fiat e Peugeot. Apesar da potência mediana (apenas 71,4 cv
no álcool), o principal ganho era no torque: 12,3 kgfm. Com isto, o motor que
equipava a versão SX do Uno, passou a equipar as versões de entrada de Uno e
Prêmio, intituladas de “S”. Além disto, o sedã inovaria o mercado ao oferecer o
primeiro computador de bordo do país como opcional, disponível também no hatch
no lugar do conta-giros.
Mas ainda faltava estender a família. Para substituir a Panorama – e seu estabanado
teto em dois níveis – ainda surgiria outro veículo: a Elba (foto acima),
lançada em março de 1986. Com as mesmas opções de motores do sedã e amplo
porta-malas, a perua oferecia capacidade para carregar até 610 litros de carga
até a parte mais alta do banco traseiro.
No ano seguinte, o hatch ítalo-mineiro
ganhava roupagem esportiva autêntica e motor um pouco mais arisco. Tampa
traseira fosca, em qualquer que fosse a cor da carroceria; faixas laterais que
estampavam nomenclatura e versão “Uno 1.5R” e calotas que lembravam os antigos
telefones de discos. No interior, eram mantidos o painel e o volante da versão
esportiva antecessora, a SX. Os cintos de segurança e uma faixa central dos
bancos eram em vermelho.
Debaixo do capô, o motor era o mesmo 1.5 que equipava Prêmio e Elba, mas um
pouco apimentado. Um comando de válvulas mais arisco, taxa de compressão mais
alta e carburador de corpo duplo faziam o carro subir dos 71,4 para bons 86 cv
e 12,9 kgfm de torque. Números que faziam o Uno ter desempenho superior ao
Escort XR3 da época: o Fiat alcançava os 100 km/h em 11,6 segundos contra 12,3
do Ford. Vale lembrar que este propulsor era alimentado por álcool. Para parar
o esportivo da Fiat freios dianteiros a disco ventilado. O modelo era calçado
com pneus Pirelli P6 165-70 R13 que colaboravam para uma condução esportiva.
Mas, para a família ficar completa, faltava apenas uma integrante: a Fiorino. A
147 pick-up deixava as linhas de produção para dar lugar à caminhonete compacta
derivada do Uno que, mais tarde, também ganharia versão furgão. Com acabamento
simples, a pick-up levava pouco menos de mil litros quando carregada até a
borda da carroceria, com limite máximo recomendado de 620 kg. Já a versão
fechada, carregava até 540 kg e tinha capacidade para mais de 2,5 mil litros.
No começo da década de 1990, o motor Sevel passou de 1.5 para 1.6:
potência de 84 cv com gasolina, 88 cv a álcool e torque de 13,7 kgfm. A versão
esportiva passava a se chamar 1.6R e a Elba ganhava opção de cinco portas no
Brasil – antes a versão de cinco portas da perua, produzida desde 1986 em Minas
Gerais, não era considerada uma boa cartada para o mercado interno e seguia
somente para exportação.
No mesmo ano, o presidente Collor e a ministra de Economia Zélia Cardoso
de Mello efetuavam uma redução tributária para motores de 800 a mil
cilindradas. O Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) sobre veículos com
motores dentro destes padrões, recolhiam apenas 20% de alíquota, metade do praticado
até então.
Surgia aí o Uno Mille – tradução livre
de “Um Mil”, em relação direta à cilindrada do motor – o primeiro popular
brasileiro. O motor era um Fiasa, de 994,4 cm³, modestos 48 cv e torque de 7,4
kgfm. Apesar dos números comedidos, o Fiat tinha boas retomadas, surpreendendo
na facilidade para ultrapassagens e na suavidade do propulsor. Chegava aos 100
km/h, partindo da imobilidade, em 21 segundos e tinha velocidade máxima de 135
km/h. A versão era espartana, algo notável pela falta do marcador da
temperatura e dos difusores de ar laterais. Câmbio de cinco marchas,
servo-freio, limpador elétrico do para-brisa e até retrovisor externo direito
eram opcionais.
Para 1991, a primeira reestilização: a dianteira recebia retoques e ficava mais harmoniosa. Faróis de perfil mais baixo e grade menor, acompanhados de um filete que percorria toda a dianteira separando o conjunto ótico e grade do radiador do para-choque dianteiro. O Uno Mille continuava do mesmo jeito: com o rosto de quem foi lançado, já que seu foco era ser um veículo de custo baixo. Pouco tempo depois, ele ganhou ignição digital, que aumentou a taxa de compressão de combustível, e carburador de corpo duplo.
Com 56 cv e 8,2 kgfm de torque, o Mille
era o veículo 1.0 com melhor desempenho naquela época. Deixava para trás o Gol
1000 e o Chevette Júnior em potência, torque, aceleração e velocidade máxima. O
Fiat ainda oferecia opção de carroceria de quatro portas e ar-condicionado, com
corte de compressor nas acelerações a fundo, com objetivo de entregar toda a
potência de volta ao motor, quando acionado.
Em 1993, a chegada da injeção eletrônica ao motor do 1.6R. A injeção multiponto
agregava o MPI ao sobrenome do esportivo, que nas laterais passava a estampar o
logotipo “1.6R MPI”. Mas 1994 seria um ano diferente para o hatch brasileiro. A
chegada do Corsa Wind fez com que a Fiat se mexesse. Um mês depois da chegada
do Chevrolet de formas arredondadas, a resposta foi o Mille ELX: uma versão
mais luxuosa do popular da Fiat. A reação era convincente e vinha com a
dianteira de perfil baixo e painel já utilizado nos topos de linha.
Tocada com pimenta
Ainda em 1994 o Uno escreveria, de vez, seu nome na história automotiva
brasileira. Sem rodeios, a Fiat fazia do Uno o primeiro turbinado nacional. Os
europeus tiveram uma versão turboalimentada em 1985 de motor 1.3 e 105 cv de
potência. Segundo o portal Best Cars Web Site, a versão foi lançada no GP do
Brasil de Fórmula 1, em 1985.
O propulsor era um 1.4, já usado no
país sede da fabricante, e pertencia à mesma família do Sevel 1.6, com radiador
de óleo e resfriador de ar. A turbina era uma Garrett T2, que funcionava à
pressão máxima de 0,8 bar. O suficiente para o hot hatch atingir potência de
118 cv e 17,5 kgfm de torque. O pequeno chegava aos 100 km/h em 9,2 segundos e
velocidade máxima de 195 km/h. Com menos de uma tonelada, o primeiro carro
turbo nacional tinha ótima relação peso-potência: 8,26 kg/cv.
No lado de fora, o Uno Turbo se destacava pelos para-choques com desenho
exclusivo e molduras de para-lama que acompanhavam a saia lateral, dando
unicidade ao conjunto. Para segurar o foguetinho no chão, rodas 14” calçadas em
pneus 185-60, montadas em cubos do Tempra – que também cedeu o sistema de
freios ao hatch. No interior, bancos envolventes, volante de três raios e
painel completo: velocímetro, conta-giros, manômetros de pressão e temperatura
do óleo e pressão da turbina.
Com a adoção de um novo bloco, o pneu reserva voltava ao porta-malas,
reduzindo significativamente sua capacidade. A falta do ar-condicionado como
opcional nos primeiros Uno Turbo, foi corrigida no ano seguinte. Os primeiros
proprietários que adquiriram o modelo ganharam um curso de pilotagem. O modelo
foi fabricado até 1996 e ainda hoje provoca fortes batidas do coração.
Veterano com fôlego
Ainda no meio de 1995, o Mille ganhava injeção eletrônica que lhe
garantia melhor desempenho. A versão ELX ganha outra denominação: EP, com
potência de 58 cv e torque de 8,2 kgfm. Novas rodas de alumínio e alarme com
telecomando foram opcionais que marcaram o modelo. Em 1996 – mesmo ano em que o
Uno era descontinuado no velho continente – chegava seu sucessor, o Palio,
desenvolvido para mercados emergentes.
Não demorou muito até que as versões topo de linha do Uno se despedissem. Prêmio e Elba deram lugar a Siena e Palio
Weekend, respectivamente. A Fiorino demorou um pouco mais a dar seu lugar a uma
pick-up derivada do Palio: o fato ocorreu apenas em 1998. Mas o Mille ainda
perduraria. A linha 97 foi apresentada apenas na versão SX. A revista Quatro
Rodas testou esta versão em novembro de 1996 e deu a seguinte manchete: O
último dos Uno.
Ledo engano. Mesmo com a evolução da concorrência, o Mille perdurou e a linha 98 passou a se chamar EX, após perder uma luz de ré. Em 2000, a versão EX virou Smart e, do lado de fora, ganhou nova grade. No interior, novo volante de quatro raios e quadro de instrumentos com fundo claro. Em 2001, adoção do motor Fire, que já utilizado no Palio: apesar dos 55 cv – dois a menos que o atual Fiasa – mais disposição em baixas rotações e maior autonomia: torque de 8,5 kgfm do atual bloco, contra 8,1 kgfm do antigo, e médias rodoviárias de até 20 km/l, segundo a fabricante.
Quanto às alterações estéticas, o Mille Fire recebia grade com o novo
símbolo circular azul da marca e novos logotipos. No interior, novo volante,
herdado do Palio Fire.
Em 2004 o Mille ganhou retoques controversos na carroceria. Do lado de
fora, há quem diga que alguns detalhes remetiam ao multiuso Doblò. No interior,
o quadro de instrumentos era dividido com o Palio, assim como o volante. O
acabamento era espartano e denunciava, cada vez mais, o Mille apenas como um
carro sem mimos. Simples, ágil e econômico, o popular da Fiat ainda atendia o
consumidor que precisava se deslocar com o custo mínimo. Seja na hora de
abastecer ou na hora da revisão.
O fôlego novo ao Mille, em 2005, veio
com adoção do motor bicombustível. Na gasolina, eram 65 cv e no etanol 66,
contra 55 do antigo propulsor, alimentado apenas por gasolina. O torque de 8,5
kgfm (monofuel) subiu para 9,1(g) 9,2(e) kgfm na versão flex. No ano seguinte,
o Mille ganhou como opcional o pacote Way, que trazia um visual aventureiro
leve. Pneus 175-70 (contra os 145-80 da versão Fire), altura de rodagem maior e
molduras plásticas nos para-lamas.
Mais tarde, já em 2008, o pacote virou versão e o Mille “civil” passou a se
chamar Economy. Entre as mudanças, quadro de instrumentos com novo grafismo
acrescido de um econômetro, que indica através de um ponteiro como dirigir de
maneira econômica. Pneus de menor resistência ao rolamento, alterações na
suspensão, redução de atrito entre componentes do motor e quinta marcha mais
longa completavam o “kit economia”.
Com um projeto novo, o nome Uno é retomado no Brasil. Com um desenho quadrado de quinas arredondadas, não demorou muito até que sua presença fosse notada nas ruas. Mas e o Mille? Ele se despediu em 2013 do mercado. Com a versão Grazzie Mille, numerada em duas mil unidades, bem equipada e custava R$ 31,2 mil.
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