New Hampshire e a suspensão de vendas do BMW i3 nos Estados Unidos

Devido a um teste e uma particularidade na legislação do pequeno estado norte-americano, a marca alemã suspendeu as vendas do compacto elétrico em todo o território dos EUA

Uma coisa que precisamos ter em mente, quando se trata de Direito, é que as leis não são iguais para todos os territórios. Cada país, cada estado, cada região, dependendo da forma como aquela nação se organiza estruturalmente, possui um conjunto próprio de leis, que corresponde e atende às necessidades – e aos costumes – daquele povo. E essa multiplicidade de códigos e normas afetam, também, a mobilidade urbana e tudo que a cerca. No texto de hoje, veremos como uma peculiaridade do pequeno estado de New Hampshire foi responsável por suspender as vendas do BMW i3 nos Estados Unidos.



Antes de mais nada, faz-se necessário explicar o caso: ano passado, a BMW suspendeu temporariamente as vendas do compacto elétrico i3 em todo o território norteamericano, em razão de um teste realizado pelo NHTSA, órgão responsável pela segurança viária nos Estados Unidos. Na ocasião, foi constatado que mulheres com até 1,52 m e menos de 50 kgs, sem estarem equipadas com cinto de segurança, teriam risco de lesões no pescoço em choques frontais contra barreiras rígidas. Bem específico, não?

Certamente, o que mais chama a atenção de um brasileiro nas condições desse teste, além da estatura feminina tão baixa, é a ausência do cinto de segurança, afinal, o Código de Trânsito Brasileiro determina o uso obrigatório do equipamento em todo o território nacional, conforme versa o art. 65:


Art. 65. É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN.”


Apesar de muitos motoristas e passageiros agirem com a negligência de dispensar o uso do cinto – mesmo sendo contra a lei –, está internalizado em nossas ideias sobre mobilidade que o equipamento é obrigatório e fundamental para nossa segurança. Causa-nos estranheza, portanto, que um órgão realize testes de impacto em condições teoricamente impróprias. Mas se deve destacar que, para o pequeno estado de New Hampshire, o teste tem muita coerência, afinal, é o único estado-membro da federação norteamericana onde o uso de cinto não é obrigatório para maiores de 18 anos. Mas como isso é possível?

Primeiramente, é necessário esclarecer os EUA possuem um modelo de federação – ou seja, território dividido em estados – um pouco diferente do que temos no Brasil. Por lá, os estados possuem mais autonomia, inclusive para criar leis próprias. Dessa forma, é possível que em alguns estados norteamericanos existam proibições próprias, que não são vistas no resto do país. Assim, fica claro para o leitor porque que na pequena New Hampshire o motorista pode dirigir sem utilizar cintos de segurança, enquanto que o equipamento é obrigatório em todo o resto do território estadunidense.

Mas ainda que fique claro como funciona o modelo federativo americano, o leitor pode se perguntar como é possível que um estado não reconheça a importância do cinto para a segurança na mobilidade. A resposta dessa indagação está na história do povo norte-americano. Desde os tempos de luta por independência, o cidadão dos EUA dá extremo valor à sua liberdade, seja ela de que tipo for – não é à toa que um dos monumentos mais famosos do país é a Estátua da Liberdade, um presente francês no centenário da vitória na revolução americana.



A importância da liberdade para o povo americana está registrada não apenas na sua história, mas também em sua Constituição, que entrou em vigor em 1789. No preâmbulo do texto constitucional – ou seja, no primeiro parágrafo –, a liberdade aparece como um dos principais objetivos para a nação estadunidense, como pode ser observado abaixo, em tradução realizada pela Universidade Estadual de Londrina:


”Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América.”

E não para por aí. Ainda que de modo exemplificativo e fora do contexto de mobilidade urbana, deve-se destacar a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que leva ao povo americano outros tipos de liberdade, como a liberdade religiosa e de imprensa, como pode ser observado abaixo, novamente em tradução realizada pela Universidade Estadual de Londrina:


"EMENDA I O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos."


Diante de tudo o que foi exposto até o momento, fica fácil para o leitor compreender como que um estado-membro de uma federação pode considerar legal o ato de dirigir – ou, ainda, de andar como passageiro – sem utilizar cintos de segurança. Em New Hampshire, o direito à liberdade de escolha é mais importante que a necessidade de uma mobilidade urbana segura e livre de graves acidentes. E é neste ponto que a BMW está inclusa.

Devido ao resultado do teste promovido pelo NHTSA, o i3 expôs a marca alemã ao risco de provocar lesões em passageiros sem cintos de segurança, o que seria uma violação às leis estabelecidas no estado de New Hampshire. Dessa forma, a empresa suspendeu a venda do compacto elétrico no território americano e ainda convocou recall das unidades anteriormente comercializadas, de modo a evitar graves acidentes e, ainda, efetuar as mudanças necessárias para que o modelo atenda à legislação de todo os Estados Unidos.



O curioso caso exposto nesta semana é um exemplo claro da importância do Direito para a mobilidade urbana e da forma como a legislação vigente afeta no nosso trânsito pelas cidades - e também, em todo o mercado produtivo que existe em volta da locomoção -. Observamos, aqui, que até mesmo a legislação particular de um estado-membro de 1.3 milhões de habitantes pode obrigar uma gigante industrial a rever seus produtos.

Na próxima semana, continuaremos analisando o campo dos acidentes, mas em âmbito nacional. Iremos relembrar a tragédia ocorrida na praia de Copacabana em janeiro deste ano, quando um motorista atropelou 18 pessoas que transitavam pelo calçadão, e abordaremos a epilepsia sob a visão do Código de Trânsito Brasileiro. Até lá!

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